
A imagem do Superman foi bastante desgastada na última década. A partir da dessaturação literal das cores trazida pela trilogia do Batman de Christopher Nolan, uma postura excessivamente séria passou a dominar o gênero, afetando a maneira como o público enxerga a fantasia e a ingenuidade. O efeito colateral foi um apetite crescente por filmes “cinzentos” e carregados de realismo sombrio.
Nos últimos anos, obras como Brightburn, The Boys, Invencível, Injustice e os filmes de Zack Snyder têm se dedicado a desconstruir o mito do Superman a partir de uma perspectiva pessimista, quase “punk”. Nessas narrativas, o personagem — direta ou metaforicamente — é usado como símbolo da pior face da humanidade. Todas compartilham uma mesma fixação: imaginar o que aconteceria se essa figura extraordinária fosse, na verdade, um vilão. Como se inverter a imagem do herói bondoso fosse, por si só, uma demonstração de maturidade narrativa.
No fundo, essa tendência revela um paradoxo. Retratar um imigrante superpoderoso cuja principal função é dominar ou destruir seu novo lar diz mais sobre a mentalidade imperialista americana do que sobre qualquer crítica real ao personagem. Se a única narrativa possível para alguém que chega de fora é a da ameaça e da destruição, isso diz muito mais sobre quem está contando a história do que sobre o próprio imigrante.

Nesse cenário, James Gunn encara o desafio de reconstruir o Superman, indo na contramão da tendência sombria dos últimos anos para devolver ao personagem sua fantasia e ingenuidade originais. Esse resgate parece ser um traço marcante do novo universo cinematográfico da DC, como já sugerido por Matt Reeves ao repensar o Batman em 2022.
Gunn reinventa Metrópolis como um espelho ácido da sociedade contemporânea — refletindo temas como o culto aos bilionários, o genocídio em Gaza promovido por Israel e o impacto das fake news — ao mesmo tempo em que recupera a ternura clássica do super-herói. Tudo isso carregando a responsabilidade extra de inaugurar uma nova fase do universo DC nos cinemas, com a proposta de unificar suas narrativas em uma trama coesa.
No filme, acompanhamos a jornada do Superman enquanto tenta conciliar sua herança kryptoniana com a vida humana de Clark Kent (David Corenswet), criado em Smallville, Kansas. Seus ideais de justiça e verdade são desafiados por aventuras épicas e por uma sociedade que passa a encarar esses valores como antiquados ou ingênuos.
Dado o tamanho do desafio, é admirável o que James Gunn conseguiu realizar. O diretor encontrou ouro no trio principal: Nicholas Hoult entrega um Lex Luthor perturbador, frio e calculista; Rachel Brosnahan interpreta uma Lois Lane carismática, ágil e espirituosa; e David Corenswet encarna um Superman com charme ingênuo e uma força emocional que transborda potencial.
Gunn opta por iniciar a narrativa já no calor da ação, deixando claro, desde os primeiros minutos, os temas centrais do filme. As cenas de voo, com uma estética quase documental — lembrando câmeras GoPro —, são visualmente empolgantes. A fotografia faz bom uso do sol superexposto e das cores vivas, devolvendo ao herói a energia que lhe é característica. A exceção fica por conta das sequências no chamado “mundo portátil”, onde o excesso de sombras torna a ação confusa e menos envolvente. No segundo ato, o filme perde um pouco do fôlego, inchado por subtramas, personagens e temas demais.
Parte disso é o preço de inaugurar um novo universo compartilhado e, ao mesmo tempo, abordar questões densas como o conflito Israel-Palestina. São momentos ousados e inspirados, mas que nem sempre se encaixam com fluidez. Enquanto Matt Reeves reconstruiu o Batman focando em como o herói transforma o mundo ao redor, Gunn vai além: aqui, a opinião pública vira quase um personagem — volátil, manipulada por Lex, e afogada em temas como cultura do cancelamento, polarização política, fake news, bots e preconceito contra imigrantes. Gunn usa esse cenário para virar o jogo e provocar: o que diz sobre nós a recusa em acreditar num herói genuinamente bom?
Superman é, como seus protagonistas, um projeto cheio de contradições. Clark Kent representa a fusão entre força e gentileza, Lois Lane combina inteligência com reservas emocionais, e Lex Luthor esconde sua insegurança sob a fachada da psicopatia e da ambição desmedida. O filme traduz essas camadas com ideias provocativas, ainda que carregue o peso de ser a pedra fundamental de uma nova fase da DC no cinema. Mesmo com seus tropeços, há algo corajoso no que Gunn propõe — e é especialmente notável que ele tenha tido a ousadia de denunciar o genocídio do povo palestino em uma superprodução hollywoodiana. Usar o Superman para isso exige bravura — ainda mais mantendo intacta a fantasia doce que há tanto anda ausente no cinema de heróis.