
Você tem um dom? Aquela aptidão natural para desenvolver uma atividade? Parabéns, mas por favor, não caia no conto de que essa aptidão foi alguma dádiva divina. Me parece muito bonito esse conceito de que fomos presenteados com uma benção sobrenatural que validasse aquela função que desempenhamos por prazer, mas pra mim é só aptidão, gosto pessoal, nada mais.
Na infância, quando somos perguntados “O que você que ser quando crescer?”, se a criança responder: jogador de futebol, pintor, escritor, músico… logo nasce uma preocupação natural de pais que lutaram tanto para equilibrar os pratinhos da receita familiar. Fomos habituados a invalidar nossas próprias capacidades, o sistema nos força desde criança a relegar nossas aptidões como meros hobbies, transformando nossos conhecimentos em instrumentos utilitaristas da máquina capitalista e entregando nossa subjetividade à algo inútil. Salvo aqueles que foram tocados por Midas, que resistiram e se forçaram a exercer suas atividades sem a culpa ou com a fé de quem um dia pode virar um Picasso ou um Neymar.
Não consigo parafrasear com precisão, pois não encontrei o contexto exato, mas em uma de suas diversas entrevistas, o cartunista Ziraldo afirma que a principal diferença entre um desenhista profissional e uma criança é que o profissional foi uma criança que nunca deixou de desenhar. Essa frase foi um ponto nevrálgico para a partida da minha reflexão sobre o que é o dom, pois sempre fui uma criança que gostei de desenhar, nunca parei, hoje exerço essa função de maneira remunerada, estudei, fiz curso de quadrinhos, animação, design e por aí vai… anos e anos construindo minha habilidade, me sinto muito desconfortável e talvez até diminuto quando alguém simplifica isso reduzindo à um presente divino.

Como diz o velho ditado, se conselho fosse bom, ninguém daria, mas como sou teimoso, vou dizer: brinque, desenhe, jogue futebol, toque guitarra, atue, pratique karatê, escreva. Você não precisa ser bom em tudo, e muito menos ganhar dinheiro com isso. Apenas aproveite o processo e deixe de lado a ideia de que apenas os “eleitos” têm a capacidade de fazer algo extraordinário, porque isso lhes foi concedido como uma graça.