Religiosidade Afrodiaspórica: valorização e preservação do culto afro-ameríndio

Texto de Lucas Lima, aprendiz da religiosidade afrodiaspórica, escritor e defensor da pauta racial
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       “O povo de Axé carrega nas veias a força motriz daqueles que vieram primeiro. O povo de Axé é fruto do suor negro, do sangue negro, da coragem do povo preto. O Axé é resistência!” / Foto: Divulgação

A trajetória das religiões remonta às origens da própria humanidade. Para diversos estudiosos e teólogos, ela está profundamente conectada ao surgimento do ser humano. Desde os primeiros indícios de consciência, as pessoas tentam entender o mundo ao seu redor e o sentido de sua existência, frequentemente recorrendo a crenças e práticas religiosas.

Hoje, no mundo contemporâneo, inúmeras são as expressões religiosas e numerosos são os seus seguidores. A religião, sendo esta monoteísta ou politeísta, desempenha papel crucial na formação humana de seus filiados. Formas de se encarar o mundo, levando em consideração a importância ética social da religião nesse ciclo natural: a vida.

Muitas foram as práticas religiosas que se desenvolveram e se transformaram no contexto da diáspora africana. No Brasil, berço cultural de muitas expressões religiosas, a religiosidade africana vem ganhando cada vez mais destaque e espaço. Ao tomarmos o Estado do Ceará como exemplo, podemos perceber uma crescente de adeptos das religiões de matriz africana. Terreiros localizados em diversos bairros da Capital cearense, ao exemplo dos terreiros presentes no bairro Bom Jardim & Granja Lisboa, representam verdadeiros quilombos de resistência.

Nesse movimento de firmeza e constância, destaca-se o Grupo Cultural Filhos do Axé, coletivo situado na região de Aracati. A associação atua ativamente nas causas e movimentos étnico-religiosos, contribuindo para a preservação e resistência da diversidade histórica afro-brasileira.

Apesar de contarem com muitos adeptos, as religiões de matriz africana continuam sendo as mais perseguidas no Brasil. Um levantamento feito com base no número de denúncias ao canal do Ministério dos Direitos Humanos, mostrou que o Brasil apresentou um aumento de mais de 80% de casos de intolerância religiosa.

O Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, aponta que, em seis anos, as denúncias de crimes de intolerância religiosa na internet triplicaram, passando de 1,4 mil registros em 2017 para 4,2 mil em 2022, segundo dados do Disque 100.

Por qual razão a religiosidade afro-brasileira é perseguida?

Para responder a essa pergunta, é preciso entender como ocorreu a chegada da espiritualidade africana em nosso país e como se desenvolveu seu processo de resistência ao longo do tempo.

Ao contrário do que se pensa, na África antes da chegada dos europeus, não só havia povos organizados em tribos. Houveram, além do Egito, diversos reinos e impérios bastante desenvolvidos, em vários aspectos, tais como, tecnológicos, econômicos, educacionais, culturais, e religiosos.

Ao longo do período da escravidão, diversos povos e grupos étnicos foram forçadamente retirados da África e trazidos para o Brasil. Milhares de homens, mulheres, crianças e idosos foram tratados como mercadorias. Por muito tempo, a economia brasileira sustentou-se no trabalho escravo.

Os africanos eram capturados e transportados em condições desumanas. Todo o processo de escravidão foi legalizado e institucionalizado, sustentado por ideias econômicas e racistas que viam os negros como uma fonte de lucro essencial para a coroa e os colonos. 

Com isso, arrancados da África, trazidos à força para o Brasil, estes homens e mulheres foram obrigados a adotar a fé do colonizador. Entretanto, ainda que com muitas dificuldades e privações, muitos povos e grupos de pessoas escravizadas procuraram manter sua tradição e cultura religiosa intactas. Como o povo escravizado recebia a religião cristã compulsoriamente, era necessário esconder ou disfarçar suas práticas religiosas.

Embora estivessem misturados em grupos étnicos variados, os africanos, apesar dos sofrimentos e das sevícias de que eram vítimas, buscaram – de forma consciente ou inconsciente – soluções práticas para resolverem problemas cotidianos, como o exercício de seus rituais religiosos.

O movimento de resistência negra para manutenção de sua Fé, se deu por meio do chamado sincretismo religioso.

No Brasil Colônia, os Iorubás — grupo étnico linguístico originário da região ocidental da África — foram escravizados e precisaram desenvolver estratégias para preservar o culto aos orixás. Como seus ritos eram proibidos pelo cristianismo, eles associaram suas entidades africanas a imagens cristãs para disfarçá-los. Outros povos africanos escravizados, como os Bantos e Jejés, também sofreram repressão religiosa e adotaram práticas semelhantes para manter suas crenças vivas.

Foi assim que, por exemplo, Iemanjá acabou sendo “associada” com uma outra figura também chamada de “Mãe de Todos”: a Virgem Maria. Nesse processo de fusão entre crenças, a Rainha do Mar também é associada a Nossa Senhora dos Navegantes e a Nossa Senhora das Candeias. Mas, tendo o racismo como efeito sistêmico, Iemanjá foi ganhando uma imagem de mulher branca, dissociada de sua raiz negra.

Esse embranquecimento é evidente também em outras esferas da sociedade brasileira. Essa forma de traduzir dois mundos religiosos distintos ajudou-os a manter viva suas tradições religiosas ancestrais, ainda que mescladas com o sistema hagiológico católico.

Vale destacar o papel do racismo como instrumento de desmonte cognitivo, intelectual e cultural. A criminalização da cultura negra no Brasil teve um impacto profundo na população afrodescendente. A demonização da fé e das tradições negras é um processo histórico que se desenrola há décadas.

Leis como o Código Penal de 1890 foram criadas para perseguir essas expressões culturais, associando-as à feitiçaria. Os dados confirmam o que magistrados e ativistas da causa racial já afirmam: existe uma clara perseguição às pessoas, povos e comunidades de terreiro no país, marcada por preconceito e julgamentos sem base cultural ou acadêmica.

Embora o sincretismo religioso tenha ajudado a preservar práticas africanas, ele também enfrenta críticas por parte de estudiosos que defendem a valorização das tradições originais. Assim, em busca de validação eurocêntrica, muitas comunidades foram obrigadas a se distanciar de suas crenças originais.

O colonizador, carregado de preconceitos e pseudociência, estigmatizou as religiões de matriz africana e indígena. A marginalização do povo preto está profundamente ligada ao processo colonial, gerando práticas racistas que permanecem até hoje. Muitos praticantes dessas religiões enfrentam barreiras institucionais para exercer sua fé livremente, seja no trabalho, na escola ou em espaços públicos.

A resistência dos povos de terreiro demonstra que a luta por igualdade e justiça continua. Hoje, graças a políticas públicas afirmativas, casas de Axé, como o ILÊ IBÁ ASÈ KPÓSÚ AZIRI, no bairro Rachel de Queiroz em Fortaleza, podem expressar sua fé e valorizar sua cultura ancestral. Fundado em 1975 e liderado pelo Babalorixá Shell de Obaluaiê, o terreiro também atua como associação cultural e promove o diálogo inter-religioso para fortalecer o respeito mútuo. Organizações como a Associação Nacional de Mídia Afro e o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos de Matriz Africana atuam na defesa dessas comunidades.

Religiões de matriz africana, como Candomblé e Umbanda, nasceram desse caldeirão cultural formado no Brasil e, apesar dos inúmeros desafios, permanecem firmes e ganham cada vez mais força. Essa resiliência é uma marca da sociedade brasileira. Embora a valorização da cultura negra ainda enfrente obstáculos, avanços legislativos e o reconhecimento da história afro-brasileira ajudam a combater a criminalização histórica. Figuras como Zumbi dos Palmares, Tia Ciata, Mãe Menininha, Leci Brandão e Djamila Ribeiro são fundamentais para a afirmação cultural negra. A religiosidade africana no Brasil é, acima de tudo, uma história de resistência, resiliência e luta por reconhecimento e respeito.

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