“Chuta que é Macumba”: desconstruindo o uso da palavra encantada

Texto de Lucas Lima, aprendiz da religiosidade afrodiaspórica, escritor e defensor da pauta racial
Compartilhar
Seguindo os estudos para definir a palavra macumba, o escritor, professor e historiador Luiz Antônio Simas, nos esclarece que a palavra designa também um conjunto de rituais religiosos do que podemos chamar de “caldeirão cultural de África” / Foto: Divulgação

“O uso dessas expressões é algo que as pessoas naturalizam. Como, por exemplo, falar que é ‘coisa de preto’ tem o sentido de que algo não é bom, algo que não dá certo. Então, acredito que as pessoas talvez não saibam o que significam essas expressões ao pé da letra, pela história, mas sabem que a ideia é ofender, isso é fato. Acho que com o conhecimento, algumas retirem essas palavras e expressões de seu vocabulário, mas outras vão continuar usando conscientemente”, afirma a gerente Estadual de Promoção da Igualdade Racial da SEDH, Edneia Conceição de Oliveira.

O racismo, sistema opressor e que classifica pessoas com base na tonalidade da pele, atua como ferramenta de desmantelo intelectual, cognitivo e cultural. A palavra macumba, assim como tantas outras palavras e manifestações de caráter afro-religioso, foram classificadas pelo sujeito branco e euro-cristão, como diabólicas e animalescas, alimentando, em uma sociedade cada vez mais alicerçada em dogmatismos religiosos, a demonização do culto afro e a não tolerância, ou melhor, o não respeito para com essas muitas manifestações do Sagrado. Bora aprender mais sobre a potência dessa palavra e seu peso cultural?

Antes de mais nada, precisamos reforçar o que muito já é falado e denunciado: o Brasil, terra de gente diversa, é um país estruturalmente racista! Que fique claro. Graças aos avanços no campo do debate responsável e comprometido com a causa racial, diversos praticantes do culto afro-ameríndio, na justa luta contra o preconceito religioso, começaram a compartilhar a informação de que a palavra macumba designa um instrumento africano de percussão, e não uma ritual sagrado.

Com isso, o uso do termo em sentido litúrgico é pejorativo. Quando colocada de forma equivocada, não é preciso muito esforço para entendermos o peso pejorativo dessa expressão, pois a desvalorização e desqualificação do culto não cristão, vem acompanhada de adjetivos cruéis.

A palavra “macumba”, assim como outras expressões de origem africana, foi estigmatizada e demonizada ao longo do tempo, passando a ser usada de forma pejorativa na sociedade brasileira. Durante a colonização, o colonizador — que se via como superior intelectual e culturalmente — associou os cultos de matriz africana à feitiçaria e à bruxaria, reforçando visões distorcidas e preconceituosas dessas tradições.

Hoje, setores e grupos mais conservadores da sociedade, como é o caso dos neopentecostais, contribuem, através de seus discursos neocoloniais e enraizados num fundamentalismo pseudoreligioso, na construção equivocada do sentido etimológico da palavra.

Lembremos: o discurso traduzido, inicialmente, pelo colono europeu em relação aos povos originários e aos muitos povos que, forçadamente, foram tirados de África, perpetuou um olhar preconceituoso e ignorante em relação à palavra “macumba”. O colonizador roubou a identidade cultural desses povos, atribuindo-lhes a um lugar de reclusão. Há algo ainda mais preocupante: a normalização dessas perversidades e o discurso que tenta convencer os inferiorizados dessa tal suposta supremacia branca, europeia e cristã.

Macumba, enquanto instrumento, é uma espécie de reco-reco tocado com duas varetas, uma fazendo o som grave e outra, o som mais agudo. Esse termo, segundo alguns historiadores e estudiosos, têm uma raiz no quimbundo mukumbu, que significa “som”. Durante o desenvolvimento do samba brasileiro, essa palavra foi empregada repetidamente por muitos sambistas, destacando aqui o nome de João Machado Guedes, popularmente conhecido como João da Baiana.

João, neto de pessoas que foram escravizadas e caçula de 11 irmãos, falava com frequência da importância da palavra. Trazendo para os nossos dias, é importante destacar o nome de Dudu Nobre, outra importante figura do nosso Samba, que, majestosamente interpretando sambas famosos, deu destaque para a palavra encantada ao popularizar o termo nos versos da canção escrita por Zeca Pagodinho: “Eu vou botar teu nome na Macumba”. É certo afirmar: Sambistas & Macumbeiros!

Entendemos até aqui que macumba, essa palavra cheia de encanto e força, refere-se a um instrumento musical. Seguindo os estudos para definir a palavra macumba, o escritor, professor e historiador Luiz Antônio Simas, nos esclarece que a palavra designa também um conjunto de rituais religiosos do que podemos chamar de “caldeirão cultural de África”. Esse conjunto ritualístico amalgamou diversos ritos de ancestralidade, tais como os bantos centro-africanos, calundus, pajelanças, encantarias, catimbós, cabocladas, culto aos orixás iorubanos, arrebatamentos do cristianismo popular, espiritismo e afins.

Vale destacar também as definições apresentadas pelo grande filólogo e etimólogo Antenor Nascentes e por Nei Lopes, profundo conhecedor do assunto e autor do Dicionário Banto do Brasil. Para Antenor, a palavra “macumba”, no sentido dos ritos, vem do quimbundo dikumba – cadeado ou fechadura -, referindo-se a cerimônias secretas de fechamento dos corpos.

Nei Lopes, por sua vez, esclarece que o termo vem do quicongo Kumba – feiticeiro. Robert Slenes, que é historiador e uma referência nas pesquisas sobre escravidão, seguindo os estudos de Lopes, reafirma essa última explicação apresentada. Desse modo, a expressão pode traduzir, ou melhor, designar tanto uma espécie de instrumento musical, e nesse caso estamos falando do já mencionado reco-reco, como as diversas cerimônias religiosas. Seguindo ainda as elucidações de António Simas, a primeira explicação deriva do quimbundo e a segunda do quicongo.

No início da colonização, o continente africano foi brutalmente atacado pela ação do colonizador que, buscando despedaçar todo o território negro, buscou afirmar que África era uma unidade. Ao tomarmos ciência do significado de algumas palavras vindas do continente, essa visão colonizadora cai por terra. A etimologia das línguas Bantu é muito complexa e cheia de riqueza, o que coloca em cheque essa vã afirmação de uma só África – unidade. Macumbeiro, por tanto, é o instrumentista que toca macumba, que faz música dançante, que bate tambor, que alegra. Quem me dera ser uma kumba!

Fiquemos com a linda explicação de Antônio Simas:

Macumbeiro: definição de caráter brincante e político que subverte sentidos preconceituosos atribuídos de todos os lados ao termo repudiado e admite as impurezas, contradições e rasuras como fundantes de uma maneira encantada de encarar e ler o mundo no alargamento das gramáticas. O macumbeiro reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e da alteridade entre as gentes. A expressão “macumba” vem muito provavelmente do quicongo kumba, “feiticeiro”. Kumba também designa os encantadores das palavras, poetas. Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais de reexistência e descacetamento urgente pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão castradora do mundo como experiência singular de morte.

Acompanhe o Veredas nas redes sociais e fique por dentro de tudo!

ASSUNTOS

Publicidade

Mais lidas

Publicidade