A língua dos anjos, conversa de espíritos

Texto de Letícia Serpa, jornalista e musicista em formação com enfoque na área de crítica musical
“A música é o diálogo dos espíritos. E desde quando o espírito existe? Caso descoberto, poderia ser um elo perdido da evolução, mas o espírito sempre existiu, a música também” / Foto: Divulgação

Eu faço parte da gestão atual do centro acadêmico da minha faculdade, e, na última semana, tivemos que fazer a recepção dos calouros do curso.

Uma das atividades consistia na apresentação dos professoras, foram necessários três dias para a dinâmica. No segundo, um momento marcante aconteceu, o que me fez ter uma certeza: a música não é só a língua dos anjos, mas a maneira que o espírito se comunica.

Certo professor avisou que iria fazer uma pergunta e pediu para que um aluno pudesse responder conforme sua indicação. Ele cantarolou em ritmo e melodia própria e esta era a pergunta que apontava para o receptor. Sem letra ou necessidade de explicá-la na língua portuguesa ou em qualquer outra que saibamos existir, os calouros respondiam cantarolando o mesmo verso (o que possivelmente estaria confirmando a indagação/questionamento) ou construindo a sua própria mensagem em versos autênticos, mas que tinham ligação com a pergunta, seja por cadência ou harmonia.

Quando o peito salta, sangra ou padece, o espírito é o responsável por tomar posse da carne e da consciência. É possível sentir o inexplicável diante dos momentos de graça, desamparo ou solidez que a música proporciona.

O show do artista que se admira, o som que aparece nos momentos certos e, em plano de fundo, faz a vida parecer um filme. A vida é, na verdade, melhor que qualquer ficção, por mais que tudo faça crer que não, na vida a música acontece. Nós, seres musicais, tornamos possível.

Inclusive, a melhor maneira de se conhecer um lugar, é saber que música ecoa por lá, e que instrumento, batuque, ritmo ou voz nasceu ali e como é presente no cotidiano das pessoas, isto dita a arquitetura, os costumes, o sotaque, quais vidas habitam aquele espaço. Se somos, antes de mais nada, alma, um lugar é, antes de mais nada, música. O som do mar revolto, do balançar das árvores, da chuva, em que momento do dia entoam os pássaros, o timbre das vozes. Sim, sobre o que você achou que eu estivesse falando? Se entendeu errado, não está prestando atenção. Afinal, no mundo pré-histórico a música não existia?

A música é o diálogo dos espíritos. E desde quando o espírito existe? Caso descoberto, poderia ser um elo perdido da evolução, mas o espírito sempre existiu, a música também. Como tudo, as duas coisas progrediram, o espírito utilizou-se do meio humano e de sua capacidade de raciocínio para se comunicar, mas já o fazia anteriormente. Percebam que o espírito é espacial, ele é energia e atravessa dimensões, a carne é limitada. Mas existe limite na música?

Colegas meus da faculdade, também formados em matemática, um dia, foram tentar descobrir se, entre dois tons, há uma infinita gama de semitons e semi-semitons e assim sucessivamente, e se seria possível dizer que são infinitas as possibilidades de mudança de tons, encontrando o seu limite (ou algo parecido com o que escrevi, porque não sou formada em matemática), e a resposta foi: sim – exatamente o que disseram quando eu perguntei “o que é isso no quadro?”, e responderam “é sim”.

Por que deveríamos achar que a música é tão simples ou pouco complexa ou limitada quanto qualquer idioma que aprendemos nas escolas ou em cursos extracurriculares e que está para o corpo físico assim como a banana está para o macaco? Por que acham ser tão fácil uma melodia expressar mais que conseguem as palavras? A dor, o medo, a alegria, o amor, a surpresa. O que parece é que copiamos as emoções, que existem mesmo é na língua dos anjos, na comunicação dos espíritos, na música; e tornamos sua existência mais palpável em expressões faciais, corporais, em palavras, mas tudo já estava escrito no dicionário dos anjos, assim como são novas as palavras que expressam sentimentos antes sem nome, as saudades, a nostalgia do que se não viveu, tantas novas palavras e eu só precisaria de um piano.

Não acredita? Pois, fique com a informação de que a Nasa descobriu o som de um buraco negro. “ah, letícia, mas o espaço não produz som”, sim, mas emite ondas. E o buraco negro tem o exato som que imaginaríamos ter: o som do medo, do abissal, do desconhecido. Há espíritos em sofrimento naquele lugar? Deve existir uma explicação.

Sobre explicações: hoje, completo 27 anos. E esta coluna é a mais especial até aqui. É importante falar sobre espírito agora, pois nunca esteve tão presente em mim a incapacidade de sintetizar as magias das coisas inúteis, dos feixes, dos vultos, dos reflexos, das estrelas cadentes, coisas que só o espírito percebe; e continua a acontecer. Ele não descansa, e quer uma coisa: sua realização, quer elevar-se, ser sublime.

Com 27 anos, disseram a mim uma vez: é preciso ter cuidado… e, por acaso, espírito morre? Mas, entendido o recado, não quero ir embora, não agora, mas quando questiono a mim o porquê, tenho três respostas: quero viajar o mundo, quero mudar o mundo, quero entender o mundo. As duas primeiras são fáceis, mas entender o mundo? Piada pronta. Estou tentando há alguns parágrafos explicar o porquê de a música ser essencialmente indecifrável e esta é uma porcentagem minúscula, talvez insignificante, dos mistérios do mundo.

Então, aos meus 27 ficam dois recados e um pedido (a mim mesma e aos que me leem): é essencial que busque, e que buscar seja sempre o objetivo, mais que encontrar, é neste espaço de dúvida e de tentativa que permanece a arte; documente o que puder, mesmo sem respostas, documente sem que seja necessário entendimento, só diga, expresse em voz, em batuque, em movimento, em tinta ou em palavra; e por último: cuidado. Tenha cuidado.

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