É meio melancólico pensar que a minha primeira coluna no Veredas começa com uma catacrese no título: “O dia em que conheci David Lynch…”. Não, eu não o conheci pessoalmente. Nunca tive essa chance. Quando ele veio ao Brasil, em 2008, eu sequer sabia que ele existia. Minha história com Lynch começou bem depois, durante o segundo semestre do meu curso de jornalismo, quando eu também estudava cinema na Casa Amarela Eusélio Oliveira, da Universidade Federal do Ceará.
Tudo se iniciou com uma crise monstruosa de apendicite. E, como toda crise, a dor foi indescritível. Começou às 20h de uma segunda-feira e, 14 horas depois, no dia seguinte, lá estava eu na mesa de cirurgia. A dor continuava, mesmo com a medicação. Coisa horrível. Mas no fim deu tudo certo. Exceto por um pequeno detalhe: Quando estava internado, pedi à minha mãe o meu computador. Queria ver uns filmes enquanto me recuperava na cama do hospital.
Pois bem, ao abrir o notebook, adivinhem o que encontrei? Vídeos no YouTube explicando como era feita a cirurgia. Quase vomitava ali mesmo. Minha mãe, coitada, estava tentando entender como funcionava o procedimento (enquanto eu estava moribundo) e esqueceu de fechar o vídeo. Imagina a cena: A primeira coisa que vi ao acordar foi exatamente o que estavam fazendo em mim enquanto eu dormia. Urgh.
Enfim… Fiquei 20 dias de atestado, e nesse período, meu melhor amigo foi o tédio. Lembro do doutor dizendo: “Não se abaixe nem para pegar um lápis, não faça nenhum movimento, não faça nada sozinho”. Naquela época, eu me sentia como o James Stewart em Janela Indiscreta – sem poder fazer algo além de refletir sobre a vida, o futuro, as desilusões amorosas, ouvir música e lamentar que estava perdendo boa parte das minhas férias. Isso tudo aconteceu em dezembro de 2014.
“Masturbação muito menos. Os pontos podem abrir com esse esforço”, foi o que eu ouvi do médico com bastante constrangimento, devo confessar. “Tinha na minha testa alguma dica que eu estava ansioso por essa atividade sexual? De onde ele tirou isso, pelo amor de Deus?”, fiquei me perguntando.
Por conseguinte, aproveitei aquelas semanas de reclusão para mergulhar nas minhas “descobertas cinematográficas”. Assisti aos filmes do Zé do Caixão, que nunca tinha visto antes. Vi Ladrões de Bicicleta e Umberto D., do Vittorio De Sica. Adorei os dois. E, por algum motivo, conferi Twin Peaks. Ninguém tinha me recomendado. Simplesmente aconteceu.
A vida é engraçada, né? Parece que, apesar de ser uma só, ela se reinventa várias vezes. E a minha se reiniciou naquele momento, quando assisti à série dos anos 1990. Depois, vi O Homem Elefante, que me fez chorar por uma hora inteira. Não sei se isso torna o filme melhor, mas é meio bizarro como um longa pode provocar tamanha reação. E, sim, é um filmaço. Tenho até uma tatuagem do protagonista no braço, para me lembrar dos bons tempos, quando minha única preocupação era descobrir novas histórias, mesmo as mais soturnas – como a de John Merrick, o personagem título.
Ainda de atestado, fui assistindo a outros filmes do diretor: Cidade dos Sonhos, Veludo Azul, Duna… Ai, Duna. Eu adorava a versão de Lynch de Duna. Não sei se ainda gosto hoje. Nunca li os livros, e sinceramente, não sou o maior fã das versões mais recentes. Mas o Duna do Lynch? Era o auge! Era brega, autêntico, cheio de bizarrices e com uma trilha sonora belíssima. Meu tipo de cinema é aquele que se arrisca, preciso confessar. Quem sabe eu acabe gostando mais se revisitar o trabalho.
Eu já amava cinema, mas Lynch me fez amar o conceito por trás do cinema. Quando comecei a estudar sobre ele, passei a conhecer outros críticos e cineastas apaixonados pelo diretor: Cronenberg, Carpenter, Romero… Tudo gente fora da curva mainstream, longe dos Scorsese-Spielberg-Coppola. Aquela foi uma época de repensar meus filmes favoritos, quem eu era e quem queria ser no futuro. Foi transformador.
A verdade é que, ao se iniciar na cinefilia, é comum começar pelos nomes mais tradicionais, como os três mencionados acima. Buscando algo mais singular, entretanto, é inevitável… você vai acabar conhecendo o universo de Lynch. Sua filmografia, por estar à margem da escola cinematográfica americana convencional, expande os limites da linguagem, e quem se aventura por ela acaba sendo profundamente impactado. É impossível ser o mesmo.
Dito isso, confesso: Com a morte do diretor no início de 2025, não fiquei completamente triste. O cara teve uma vida plena, fez o que amava, respirou arte, brincou com arte e ensinou arte. Enquanto alguns são acusados de assédio, cof, cof, Neil Gaiman, Lynch partiu como um herói. Não como um salvador do cinema, mas como um salvador de vidas. Um salvador de mentes. Com ele, não há pensamentos limitantes.
Ele não morreu. Eu, você, todos nós um dia vamos. Mas Lynch? Lynch não. Em mil anos, quando o planeta for invadido ou a Terceira Guerra Mundial destruir tudo, a única coisa que deveriam guardar para entender os desajustados que lutam por amor é a sua filmografia. Quer entender como funciona a cabeça dos medrosos que ganham coragem? Assista a qualquer filme desse sujeito.
Que sorte a nossa, não é? Por fim, obrigado, crise de apendicite, porque sem você eu não teria conhecido o mestre na hora certa. Me tornei quem sou naquele momento e até gosto de quem sou hoje.
Que Lynch continue brilhando, que nossas histórias favoritas permaneçam vivas e que o Veredas siga ao nosso lado, marcando os melhores momentos.